Por Kleber Martins
O Ministério Público não tem uma origem histórica comum nas diversas
nações do mundo e tampouco já nasceu com a feição que hoje possui.
Alguns estudiosos, não obstante, costumam apontar o magiai do antigo
Egito como o “parente” mais remoto dos atuais membros do Ministério Público.
Eram eles agentes públicos incumbidos de punir os rebeldes e os violentos,
proteger os cidadãos pacíficos, acolher os pedidos do homem justo, ouvir as
notícias de delitos, tomar parte nas instruções para descobrir a verdade e
indicar as disposições legais aplicáveis a cada caso. Não detinham, no entanto,
o plexo de atribuições, as garantias, as prerrogativas e a posição estratégica
dentro do sistema de Justiça ora ostentadas por aqueles que compõem o
Ministério Público moderno.
Foi somente tempos depois, no final da Idade Média, na França, que
surgiu o verdadeiro precursor dos integrantes do moderno Ministério Público.
Foi ele escolhido dentre aqueles que, então, exerciam a função de juiz, para
que passasse a exercer com exclusividade a tarefa de acusar.
Até então, sobretudo em Roma, uma vez cometido um crime, um mesmo agente
público era encarregado de fazer a acusação, de produzir as provas e de julgar
a mesma acusação. Esse agente, dessa forma, acumulava as funções de acusador e
de juiz. O “juiz-inquisitorial” dos tribunais da Inquisição seria o melhor
exemplo desse agente, sendo esse modelo de processo penal, não à toa, batizado
de inquisitivo.
Nos dias atuais, não encontraremos na estrutura do Estado um servidor
público com poderes semelhantes. Se existisse, tratar-se-ia de uma espécie de
promotor-juiz, ou juiz-promotor, isto é, alguém que incorporaria,
simultaneamente, as atribuições de ambos os cargos.
Na França, o processo penal desenvolveu-se sob outra ótica. Aqui
percebeu-se que não havia como ser realizado um julgamento justo enquanto as
tarefas de acusar e de julgar recaíssem sobre uma mesma pessoa. Isso porque a
experiência demonstrou que, de regra, quem julga a acusação promovida por si
próprio tende a acolhê-la, apegando-se ao seu teor, tomando-a como verdadeira e
minimizando a importância dos argumentos em sentido contrário; não haveria
nesse sistema, por isso, a imparcialidade necessária para proferir o julgamento
do caso, já que esse agente estaria inclinado a tornar-se partidário da tese de
acusação sustentada por ele próprio em momento anterior.
Com base nessa constatação, foram traçadas, nesse momento histórico, as
bases de um novo sistema processual penal, denominado de acusatório. São elas:
a) a missão de punir os responsáveis pelo cometimento dos ilícitos mais
graves na sociedade incumbe ao Estado;
b) essa missão é composta por duas atividades inconfundíveis, a acusação
e o julgamento, aquela realizada antes desto;
c) a punição dos delinquentes com justiça pressupõe que a acusação seja
realizada por um órgão ou agente público distinto daquele a quem incumbe a
tarefa de julgar.
Assentaram-se, assim, os princípios do promotor natural, pelo qual ninguém
pode ser processado sem um acusador legítimo e idôneo, e da inércia
jurisdicional, segundo o qual o juiz não pode punir os ilícitos que verifica
na sociedade por iniciativa própria, senão somente mediante a provocação de
terceiros.
Eis as raízes históricas do Ministério Público e do Judiciário modernos,
ambos resultantes da divisão das atribuições daquele órgão anômalo existente na
Idade Média. A tarefa de aplicar sanções aos infratores da lei passariam a ser
realizadas não mais por um, mas por dois órgãos do Estado. Ao primeiro
cumpriria, com exclusividade, a tarefa de acusar os delinqüentes perante o
Judiciário; a este, por sua vez, o encargo de apreciar essa acusação,
julgando-a. O Ministério Público não poderia julgar as acusações que formulava,
dependendo, dessa maneira, das decisões do Judiciário; este não mais poderia
trazer a si próprio as acusações, passando a depender das que fossem formuladas
pelo Ministério Público.
Inicialmente, ambas as instituições foram compostas por integrantes da
magistratura até então existente. Isso não apenas pela origem comum, como
também pela natureza pública de ambas as instituições, pela importância das
respectivas funções e pelo modo imparcial como os membros das duas buscam a
aplicação da lei aos casos concretos – mesmo quando o Ministério Público é
parte de algum processo.
Os primeiros membros do Ministério Público surgiram no reinado de Felipe
III (1245-1285), da França, sendo denominados procureurs du roi (Procuradores
do Rei). Tratavam-se de juízes, ou magistrados especiais, designados para
proceder à acusação. Mas foi no reinado seguinte, de Felipe IV, o Belo
(1285-1314), que o Ministério Público surgiu como instituição. A Ordenança de
23 de março de 1303 é considerada sua certidão de nascimento, regulando as
competências dos Procuradores do Rei e instituindo o Ministério Público como
magistratura especial, encarregada exclusivamente de perseguir, de ofício, os
delinquentes de delitos conhecidos.
No Brasil, seguindo a mesma linha do Direito francês, os primeiros
membros do Ministério Público eram integrantes do Judiciário designados para
exercer a acusação criminal perante os Juízos onde até então atuavam. São
exemplos disso a Constituição de 1824, que criou o Supremo Tribunal de Justiça
e os Tribunais de Relação, dentre cujos desembargadores eram nomeados os
Procuradores da Coroa, e a Constituição de 1891, que estabeleceu que o
Procurador-Geral da República seria indicado pelo Presidente da República,
devendo a escolha recair na pessoa de um Ministro do Supremo Tribunal Federal.
Nas constituições seguintes, conquanto a ele tenha sido dispensado um
arcabouço normativo significativamente inferior ao do Poder Judiciário, o
Ministério Público foi paulatinamente ganhando autonomia e feição próprias
enquanto instituição, até o advento da Constituição Federal de 1988, que o
colocou como “instituição permanente, essencial à função jurisdicional do
Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos
interesses sociais e individuais indisponíveis”. Seus membros e os do
Judiciário permaneceram ostentando garantias comuns, como independência
funcional, vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de subsídios.
De “Procuradores do Rei”, os membros do Ministério Público passaram a
ser chamados Procuradores da República ou Promotores de Justiça, conforme
pertençam ao Ministério Público Federal ou Estadual, respectivamente. A atuação
dos mesmos não mais se restringe à de acusadores no processo criminal. Com
efeito, atuam agora, com amplos poderes, para prevenir, corrigir e coibir todos
os atos que infringem a lei e que atingem direitos pertencentes a toda a
coletividade – como os relativos ao meio ambiente, à probidade e à regularidade
no serviço público, à saúde, aos direitos do consumidores, dos idosos, deficientes,
crianças e adolescentes -, os quais não têm condições de serem defendidos a
contento, individualmente, pelas pessoas em geral.
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