A fome existe desde os primórdios
da humanidade, mas, desde meados do século XX, as pessoas passaram a se referir
às dificuldades decorrentes desse flagelo como um problema de Segurança-Alimentar.
A origem do termo remonta ao final da Segunda Guerra Mundial, quando a Europa e
o Japão, com seus territórios destroçados pelo conflito, passaram a ter
dificuldade para alimentar as próprias populações. Aos poucos e por meio da
ajuda econômica norte-americana, esses países puderam recompor sua agricultura
e seu aparelho produtivo de tal forma que em poucos anos passaram a figurar nas
listas dos exportadores líquidos de alimentos. Esse resultado foi alcançado por
meio de fixação de preços elevados aos produtores locais e barreiras à entrada
de alimentos importados.
Nas décadas seguintes, com receio
de um novo conflito militar, todos os países do mundo também passaram a adotar
estratégias de Segurança Alimentar, elevando os subsídios à produção local,
mantendo enormes estoques de segurança e estabelecendo cotas para a importação
de alimentos. Na década de 1970, o tema passou a ser discutido no âmbito da
Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO) sob a
pressão da alta dos preços do petróleo, que havia também empurrado o custo dos
alimentos para cima. Para agravar a situação, o mundo vivia um período de
escassez provocada pelos problemas climáticos, por extremo protecionismo e pela
Guerra Fria, com os alimentos (ou a falta deles) sendo utilizados como arma de
dissuasão.
Em 1976, sob o enfoque dos
Direitos Humanos, aprovou-se no âmbito da ONU o Pacto Internacional dos
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que previa o reconhecimento do
direito humano à alimentação e a implementação progressiva de leis que o
garantissem em todos os países. Vale recordar que, em 1948, logo após a criação
da ONU, foi proclamada a Declaração Universal dos Direitos do Homem, mas esta
se referia apenas indiretamente ao tema da alimentação.
Finalmente, em 1996, quando da
realização por parte da ONU da Cúpula Mundial da Alimentação, os países
chegaram a um acordo sobre a definição de Segurança Alimentar e sobre os
mecanismos necessários para viabilizá-la em cada canto do mundo. Em resumo, ela
estabelece que, para que um país possa ter Segurança Alimentar, é necessário
observar quatro aspectos importantes. O Direito à Alimentação só estaria
assegurado se a sociedade e o Estado pudessem garantir que:
a) A população tenha garantia de que haja disponibilidade de alimentos.
b) Todos tenham acesso a esses alimentos.
c) Deve haver estabilidade (ou continuidade da disponibilidade e acesso).
d) O alimento deve ser bom (inocuidade) para o consumo.
Fome em meio à fartura
Dessa maneira, à luz do marco da
Segurança Alimentar, a utilização do termo “fome” deve ser visto em um sentido
mais amplo. Ou seja, a insegurança alimentar pode estar presente mesmo em
situações em que não há crise alimentar. Por exemplo, países produtores e
autossuficientes podem estar em situação de insegurança alimentar, caso a
população não tenha acesso aos alimentos. Amartya Sen, indiano ganhador do
Prêmio Nobel de Economia, destaca que pode haver fome em meio à fartura. Para
exemplificar, destaca que, mesmo nos anos mais difíceis da Grande Fome
Irlandesa do século XIX, aquele país não deixou de exportar cereais para a
Inglaterra. Outro exemplo crítico foi a Grande Fome de Bengala de 1943 vivida
por Sen: não houve escassez de alimentos, e sim dificuldade de acesso devido à
guerra e à especulação. Por sinal, essa é a mesma situação que os países do
Chifre da África estão vivendo nos dias de hoje.
Essas observações se fazem
necessárias, pois parece evidente que as políticas de combate à fome devem ser
mais abrangentes que as ações emergenciais de doação de alimentos, dinheiro ou
a organização de frentes de trabalho, como acontecia frequentemente no Brasil.
Como estamos tratando do conceito mais amplo de Segurança Alimentar, não basta
empreender ações emergenciais pontuais para estancar uma crise aqui e outra
acolá. Em outras palavras, tanto a política pública como a ajuda internacional
devem atuar de forma mais estrutural, promovendo o Direito Humano à Alimentação
entre a população necessitada.
As cifras da insegurança
alimentar são alarmantes no mundo de hoje e estão se elevando desde 2008. Vale
lembrar que os países reunidos na Cúpula Mundial da Alimentação de 1996
fecharam um acordo, comprometendo-se com uma redução de 50% no número de
pessoas famintas (balizadas pelo indicador de subnutrição da FAO) até o ano
2015. Na ocasião, a meta foi calculada tendo como ano-base 1992, quando havia
sido feita a última estatística internacional. Segundo esse compromisso, o
mundo deveria reduzir a 400 milhões o total de habitantes subnutridos no ano
2015. No entanto, antecipando-se aos acontecimentos e diante da impossibilidade
de se chegar a esse resultado, os países reunidos na Cúpula do Milênio, realizada
em 2000, em Seattle, decidiram “arredondar” a meta para uma redução de 50% da
proporção de subnutridos em cada país. Ora, como a população tende a crescer,
uma redução na proporção pode representar até mesmo mais pessoas em termos
absolutos, em comparação com o ano-base. Contudo, verifica-se nos dias de hoje
que nem sequer essa meta “arredondada” estaria próxima de ser atingida.
Na realidade, até 2008, portanto,
no antes da “crise dos alimentos”, as políticas de redução do número de
famintos então empregadas haviam provocado pouco impacto no quadro geral da
fome. Alguns progressos haviam sido alcançados em países como a China, que em
uma década conseguiu retirar 200 milhões de pessoas da miséria, e no Brasil –
para ficarmos entre os países mais populosos. Entretanto, o contingente de
subnutridos continuava bastante elevado, em torno de 700 milhões. Recentemente,
com a crise financeira internacional e a alta dos preços agrícolas, a situação
se agravou. O número de famintos, em vez de recuar, aumentou, superando a casa
de 1 bilhão em uma população mundial da ordem de 6 bilhões de indivíduos, sendo
que três quartas partes estariam domiciliadas nas áreas rurais. Em termos
globais, um em cada quatro moradores das áreas rurais passa fome.
Um brasileiro nas Nações Unidas
Não cabe aqui analisar as causas
dessa crise, mas é evidente que, quando se miram os níveis da produção mundial
de alimentos, observa-se que não há escassez. Mesmo olhando para o futuro, com
o crescimento da demanda nos países emergentes, a produção e os rendimentos
agrícolas estão aumentando e não há como justificar a alta dos alimentos por um
possível desencontro entre oferta e demanda. Não há lugar para o alarmismo e o
neomalthusianismo quando observamos as cifras da oferta mundial de alimentos.
Outros fatores como a especulação com commodities, estoques mundiais reduzidos
e pressões de curto prazo para o uso de biomassas vegetais para a produção de
combustíveis podem explicar melhor a crise e demonstram que o mundo já esqueceu
os velhos preceitos da Segurança Alimentar.
Tendo em vista a desaceleração
das economias centrais que está ocorrendo neste ano, os preços agrícolas até
recuaram um pouco, mas não há perspectivas de alteração de sinal para o futuro.
Ademais, com a crise internacional, os países ricos diminuíram seus
compromissos de ajuda internacional – inclusive nos repasses em apoio à FAO.
Vale mencionar que, pelo Consenso de Monterrey de 2002, os países centrais se
comprometeram em gastar 0,7% do PIB em ajuda internacional. Já os países pobres
– principalmente aqueles das zonas convulsionadas – estão deixando de investir
na produção. Mais do que isso, conflitos políticos – como acontece agora com a
Primavera Árabe, conflitos étnicos – como é o caso de Darfur, no Sudão do Sul,
e problemas causados pela mudança climática estão causando um enorme retrocesso
nos países pobres. Em estudo recente, técnicos da FAO estimaram que uma
inversão de, aproximadamente, US$ 30 bilhões anuais nos países pobres seria
suficiente para erradicar a fome no mundo em dez anos. Comparados às cifras da
ajuda do governo norte-americano aos bancos ou da crise europeia, esses
recursos representam muito pouco.
Nesse contexto de crise deverá
assumir o novo Diretor-geral da FAO, o brasileiro José Graziano da Silva,
comandando um orçamento de US$ 1,5 bilhão por ano e um contingente de 3,5 mil
funcionários. A FAO possui representantes em praticamente cada país do planeta.
Nas nações pobres, o representante da FAO é um verdadeiro ministro da
Agricultura e os técnicos agrícolas, da pesca, agentes sanitários etc. são
todos contratados pela FAO. Essa máquina fabulosa se encontra atualmente bastante
emperrada em razão de problemas administrativos e da falta de cooperação dos
próprios países beneficiados. O trabalho deve começar desde logo, não há tempo
para comemorações ou acertos políticos. Trata-se de um enorme desafio. É a
primeira vez que um brasileiro assume um posto tão elevado no sistema das
Nações Unidas.
Walter Belik é professor de Economia
Agrícola e coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Alimentação
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