SOBRE PEDRAS E CASTELOS
Exmo. Sr.
Diretor da Centenária Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia,
Prof. Dr. JONHSON MEIRA; Exmo. Sr. Prof. DOUGLAS WHITE, eminente Coordenador do
Colegiado de Graduação; Exmo Sr. Prof. Dr. RODOLFO PAMPLONA FILHO, patrono da
turma; Exmos. Srs. Profs. JOÃO CARLOS MACEDO MONTEIRO e JOÃO GLICÉRIO DE OLIVEIRA
FILHO, amigos da turma; Exmo. Sr. Professor homenageado FERNANDO SANTANA ROCHA;
Ilma. Sra. RAMANITA ALBUQUERQUE, Secretária da Faculdade; Ilmos. Srs. GENILSON SOUZA
DOS SANTOS e JOSÉ FRANCISCO DOS SANTOS, funcionários merecidamente homenageados;
meus afilhados, meus colegas e alunos que se encontram na platéia, minha
esposa, demais funcionários da Faculdade, meus senhores, minhas senhoras.
Boa noite.
Há uma frase
muito bonita que circula na internet, de autoria duvidosa (alguns a atribuem a
Fernando Pessoa):
“Pedras no
caminho? Guardo todas: um dia vou construir um castelo”.
Quando a li,
lembrei-me de uma história verdadeira, que gostaria de contar-lhes. Não se
trata de um drama, muito menos de um épico. É uma história que, com algumas
variações, pode parecer-se com a de muitos
que aqui estão. Talvez seja possível extrair desse relato algumas
lições, principalmente em uma noite em que celebramos o passado e saudamos, não
sem temor, o futuro. Como se diz que a
palavra convence, mas o exemplo arrasta, quem sabe se esta história não lhes
possa servir de exemplo? Omitirei os nomes dos personagens.
O sujeito foi
criado para seguir a carreira pública. Aos catorze anos, ouvia de sua mãe que,
assim que completasse a idade mínima, deveria submeter-se a um concurso de caixa da Caixa: estabilidade,
boa remuneração, férias, décimo-terceiro etc. Os pais diziam que a carreira
pública era, realmente, o ideal e que o menino deveria preparar-se para ela. Uma curiosidade: os pais eram
empresários de classe média, que, não obstante com alguma dificuldade,
mantinham um razoável padrão de vida, ainda que marcado pela insegurança. Muito
compreensível, portanto, o comportamento desses pais.
O filho não
se submeteu ao concurso referido, mas, em contrapartida, foi aprovado no
vestibular para o curso de Direito em uma universidade pública.
Agora, para
os pais, o projeto tinha de ser outro:concurso para
a magistratura. “Filho, você tem de ser juiz!”, dizia sua mãe. Além dos
benefícios comuns a toda carreira pública, ainda havia o status da profissão e
as duas férias por ano.
O filho
assimilou a idéia, que de resto já lhe era incutida há tantos anos. Preparou-se
durante os cinco anos do curso para ser juiz. Para que vocês tenham uma idéia:
o seu estágio acadêmico realizou-se exclusivamente perante o Poder Judiciário.
Aprendeu,
durante dois anos e meio, a preparar decisões e a conduzir um processo.
Era um bom
aluno: não era o melhor aluno, não estava sequer entre os dez melhores, mas não
fazia feio.
A sua
convicção de que seria juiz era tanta que, logo após formar-se, nem quis
submeter-se ao primeiro exame da OAB, já que havia rumores de que o concurso
para juiz realizar-se-ia ainda naquele semestre e, assim, deveria dedicar-se exclusivamente
àquele objetivo principal. Tornara-se um bacharel em Direito desempregado, algo muito comum, como
sabem. Estava certo, porém, de que essa condição seria passageira e que, em
menos de um ano, já seria uma pessoa rica
(para ele, até então, solteiro e sem filhos, o salário de juiz era o suficiente
para chegar à riqueza).
A sorte lhe
foi amiga. Quatro meses após a sua formatura, surgiu uma boa oportunidade: um
cargo público em comissão, com excelente salário. Os pais vibraram. O filho
passou a ajudar nas despesas domésticas e pôde dar a entrada para a aquisição
de um carro usado, que seria o seu primeiro (os pais não tinham condição
financeira para dar-lhe um carro assim
que foi aprovado no vestibular).
O menino,
porém, não era fácil. No segundo mês do emprego, chega a notícia de que o concurso
para juiz seria realizado em até três meses. Era um sinal, imaginou. Não pensou
duas vezes: ao fim do terceiro mês de emprego, pediu exoneração. Havia juntado
algum dinheiro e, como estava certo de que em pouco tempo seria juiz, não
haveria com o que se preocupar.
Os pais, como
vocês devem intuir, não gostaram nada disso.
Houve uma pequena crise familiar: “Como
você abre mão de um salário desses, para ficar sem fazer nada?!”, diziam eles.
Um parêntese.
O menino
alimentava outro sonho, paralelo ao da magistratura: queria ser professor da
faculdade de Direito. Um pouco antes de formar-se, contando com a ajuda dos
seus professores, que anteciparam as suas notas, conseguiu submeter-se a uma
seleção para professor substituto, tendo sido aprovado em segundo lugar. Três
meses depois, ele já havia colado grau; surgiu, então, uma segunda vaga, mas a
Faculdade entendeu por bem não convocá-lo, embora aprovado, sob o fundamento de
que era muito novo, fato que tornava inconveniente tê-lo como professor. Foi aberta
nova seleção, à qual o menino se submeteu. Tendo sido aprovado em primeiro
lugar, não houve como a Faculdade não convocá-lo: não obstante recém-formado,
começava a dar aulas na tradicional faculdade.
Antes disso,
porém, neste curto espaço de tempo, já havia sido convidado para dar aulas em
cursos preparatórios para a carreira jurídica. Embora ele próprio estivesse a
preparar-se para a carreira
pública, o convite foi aceito, quer pela remuneração, que era boa, quer por ser
a possibilidade de começar a sua experiência docente.
Pois bem,
voltemos à nossa história.
O menino foi
aprovado na primeira fase do concurso para juiz, com nota próxima à mínima. A
segunda fase, que era prática, o atemorizava, pois envolvia matérias que não
dominava.
Imaginava,
então: “Se passar da segunda fase, já posso começar a pensar na comarca que
devo escolher quando for nomeado...”.
Passou na
segunda fase, também com nota quase mínima.
A terceira
fase era, para ele, “favas contadas”. O candidato
deveria fazer uma sentença, envolvendo exatamente a matéria que era de seu
domínio, pois dela era professor. Ademais, como vocês já sabem, se algo ele aprendeu a fazer durante a faculdade,
certamente foi uma sentença. Estava tranqüilo.
Foi
reprovado. Nota zero na sentença. Zero, sem exagero. Não levaram nada do que
ele escreveu em consideração.
Ele foi
reprovado exatamente na disciplina que ensinava.
O seu sonho,
que também era de seus pais, não se realizou.
Prestações do
carro a pagar, cujo valor era igual ao que ele recebia como professor
substituto. Professor de um curso preparatório para a carreira jurídica: aquele
que devia ensinar como ser aprovado havia sido reprovado. A situação era
delicada: não poderia pedir demissão do curso, pois, assim, não teria dinheiro
para fazer frente às suas despesas, além de poder parecer a todos que realmente
admitia não ter condições para exercer o
magistério. Resolveu, então, enfrentar a turma, cujas aulas iniciariam em duas
semanas.
Não houve
tempo.
Logo após o
resultado, o dono do curso lhe procurou e o demitiu, sob o fundamento de que a
turma havia feito um abaixo-assinado, recusando-se a assistir às aulas de um jovem professor inexperiente
e que, além de tudo, havia sido reprovado no concurso.
Além da
queda, o coice.
As pedras do
caminho forçaram o nosso menino a refazer os seus planos. Não gostaria de
submeter-se a outro concurso, tendo que estudar disciplinas de que não gostava.
Além disso, para preparar-se adequadamente, não poderia assumir outro compromisso,
além das aulas como professor substituto, que de resto lhe propiciavam a sua
derradeira remuneração.
Um dia, na
praia, conversando com a sua namorada (que depois se tornou a sua esposa) e um
velho amigo, teve uma idéia: por que não abrir um escritório de advocacia?
Convidou o amigo, que, como ele, era do mundo jurídico e também jamais imaginara
ser advogado (queria ser promotor, como
o pai). O amigo aceitou o convite prontamente. O escritório começou na praia,
sem clientes nem dinheiro. Chamaram mais dois colegas.
Cada um dos
quatro deveria conseguir mil reais.
O
protagonista da nossa história não tinha dinheiro, como vocês sabem: procurou
alguns amigos e ofereceu-lhes um curso sobre um determinado tema. Os amigos,
como bons amigos,
acolheram
a idéia, permitindo que pudesse angariar a sua cota parte no capital social.
O início foi
muito difícil. O escritório passou por maus bocados: goteiras, falta de
clientes, dinheiro insuficiente para a aquisição de um telefone, ausência de
pessoal (não havia secretária nem
estagiário) etc. Além disso, o nosso menino enfrentava uma desconfiança em sua
casa: os pais viam grandes incertezas na carreiras de advogado e professor, não
apoiando a idéia do filho de abandonar o projeto de um cargo público, por eles
tão almejado.
As coisas
começaram a melhorar, porém.
Aquela turma
que o havia expulsado pediu, ao final do semestre, que ele retornasse, agora para
dar algumas aulas de revisão, já que não haviam gostado do professor que o
substituíra.
O dono do
curso ligou, convidando-o. O convite foi aceito e a aula de revisão, um
sucesso. Os alunos pediram outra. Novo sucesso.
Os alunos,
que o rejeitaram antes de assistirem às suas aulas, agora o aplaudiam após
conhecê-las. O dono do curso fez-lhe,
então, uma proposta: que assumisse toda a disciplina no semestre que viria. Ele
aceitou, com duas condições (já se sentia autorizado a impô-las): deveria ganhar
uma remuneração “x” e somente daria tais e quais pontos do programa.
A partir
desse dia, sua vida começou a mudar.
O escritório
crescia (já havia estagiário e secretária).
Os convites
para o magistério começavam a chegar e, ao final do ano, já abundavam.
O tempo passa
e o menino, que foi programado para ser caixa da Caixa e juiz, se torna um
advogado respeitado, professor de várias instituições de ensino, mestre e
doutor em direito, autor de livros e, algumas vezes, até homenageado pelos seus
alunos.
Das pedras do
caminho, fez um belo castelo.
Seus pais
certamente estão muito orgulhosos do seu filho, que, sem ter seguido os
caminhos inicialmente traçados, se tornou aquilo que qualquer pai espera que o
seu filho se torne: uma pessoa feliz,
um homem de bem, realizado profissional e familiarmente.
E por que
lhes conto essa história, neste momento?
Por que
gostaria de falar algo que pudesse
servir a vocês e aos seus pais.
CONTARDO CALLIGARIS, psicanalista bastante conhecido
que escreve na Folha de São Paulo, disse algo que me emocionou muitíssimo e me
serviu de mote para a elaboração desta minha mensagem. A propósito do filme
Ratatouille, em que um rato quer ser Chef de cozinha, ele diz: “Se você fosse
um rato e quisesse ser chef, qualquer
orientador lhe daria o conselho seguinte: esqueça e sonhe com algo diferente.
(...) Sua família também faria o impossível para que você mudasse de idéia”. O
rato do filme,
cabeça-dura, contra tudo e todos, torna-se cozinheiro, dedicando-se ao que sabe
fazer, a “realizar quem ele é”, como diz CALLIGARIS.
E arremata o
psicanalista ítalo-brasileiro:
“Quando
pensamos no futuro de nossos rebentos, temos, em geral, uma visão limitada,
preocupada com a "possibilidade" de seus desejos. Na maioria dos
casos, preferimos que eles tenham desejos ‘plausíveis’. Parece lógico. Mas o problema é que medimos esse
‘plausível’ a partir da lição de nossos próprios limites ou fracassos. Isso,
sem mencionar nossa vontade de guardar os filhos por perto e, eventualmente,
nossa inveja, que é inconfessável, mas existe: nem sempre é fácil aceitar que
nossos filhos inventem para si uma vida melhor do que a nossa”[1].
O que ele
disse abalou-me profundamente. Lembrei-me de imediato da história do nosso menino. Foi inevitável: emocionei-me.
Sou pai.
Quero que meus filhos “tenham desejos plausíveis”, quero a sua segurança e
felicidade. Quero que estudem na Alemanha, falem quatro ou cinco línguas,
gostem de literatura e cinema, sejam melhores do que eu, tudo, claro, de
maneira “plausível”, sem “risco” ou “aventuras”.
Mas será que
estou certo?
Muitos de
vocês têm os seus projetos, que quase sempre coincidem com os projetos de seus
pais. Certamente, a partir de agora, na execução do que planejaram, obstáculos
surgirão.
Derrotas
serão inevitáveis. “Construirei meu castelo?”, você perguntará.
Sim,
certamente. Não necessariamente como o planejado, com os quartos e localização
inicialmente previstos, mas do seu jeito, de acordo com a sua história, realização de um sonho
possível, tão belo quanto o outro, só que real.
Pensem nisso.
Eu penso nisso todo dia.
Há um filme antigo e muito famoso, “A Felicidade não se compra”, de Frank Capra, que traz uma passagem que, neste momento, merece ser relembrada. O filme começa com a tentativa de suicídio de George Bailey, que tenta atirar-se de uma ponte. Um anjo aparece e pede que ele reconsidere essa decisão. Lembra-lhe da sua importância para a vida de uma série de pessoas. Conduz George Bailey em uma viagem no tempo, mostrando pequenos momentos em que a sua existência foi determinante na vida de uma pessoa. O objetivo é mostrar a Bailey como ele é uma pessoa imprescindível; como, sem ele, outras tantas pessoas teriam um destino trágico ou infeliz. O filme conta essa viagem ao passado.
Como se trata
de um filme-com-final-feliz, obviamente que Bailey acaba por não se suicidar. A
cena final é, para mim, antológica: Bailey
comemorando o natal com a sua família e o anjo proferindo uma célebre
frase:
“Estranho,
não? Cada homem toca em tantas vidas que, ao partir, deixa uma terrível lacuna”.
(Fala do Anjo Clarence a George Bailey, personagem de James Stewart em “A
felicidade não se compra.“, filme de Frank Capra)
Eu sempre
quis ser professor da UFBA; sempre quis vestir este traje esquisito; sempre
quis ser paraninfo. Preparei-me para isso desde o dia em que ingressei como
aluno no curso de bacharelado: 19 de abril de
1993. Comecei como professor substituto; passei quatro anos afastado da
faculdade, um pouco sem esperança, pois imaginava que não haveria concurso em curto espaço de
tempo.
Em 2004,
retornei à UFBA, agora na qualidade de professor efetivo. Por uma dessas
coincidências, fui designado para duas turmas que iniciavam o curso de Direito
Processual. Pude acompanhá-las durante dois anos e meio (em alguns casos, por
três anos). Esse
grupo de alunos é, para mim, muito especial, pois simboliza a realização de um
dos meus mais importantes projetos de vida. Esses alunos saíram da Faculdade
aos poucos, nas últimas três colações de grau. Fui escolhido como patrono em
2007.1 e paraninfo em 2007.2 e agora. Não pude falar aos primeiros, pois, como
disse, era patrono. Em fevereiro, no
discurso que fiz durante a colação de grau, em que muitos de vocês estavam
presentes, disse que aquela turma era a melhor turma que eu já tive em minha vida;
que eles eram excelentes. Afirmei,
inclusive, que, para muitos, isso não era novidade, pois o dizia em sala de aula
freqüentemente. Muitos de vocês procuraram-me para questionar porque a
referência àquela turma apenas. “E a gente, Fredie?”, perguntavam.
Respondo-lhes
agora, publicamente: para mim, essas três últimas turmas da Faculdade de
Direito da UFBA são uma única turma.
São a minha
turma.
Grupo de
alunos que agora partem em busca de sucesso profissional e a construção dos
seus castelos. Pessoas que, talvez sem saber, tocaram em tantas vidas (vejam
quantos estão aqui presentes, para homenagear-lhes), foram tão importantes para
tantas outras pessoas, que, “ao partir”, ao sair da nossa Faculdade, (gostariam
que soubessem disso), deixam em minha
vida uma terrível lacuna...
Vocês são parte representativa do castelo que
construí com as pedras que encontrei pelo caminho.
Muito
obrigado e sejam felizes.
Fredie Didier
Jr.
Em 25 de
julho de 2008.
NOBRASIL JUÍZES E PROMOTORES ESTUDAM NOS LIVROS ESCRITOS POR FREDIE DIDIER
Fredie Didier
Jr. possui graduação em Direito pela Universidade Federal da Bahia (1998), mestrado em Direito pela Universidade Federal da Bahia (2002), doutorado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2005), pós-doutorado na Universidade de Lisboa (2009) e livre-docência na Universidade de São Paulo (2012). Atualmente é membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual, do Instituto Ibero-americano de Direito Processual, da International Association of Procedural Law, da Associação Brasileira de Direito Processual Constitucional e da Academia de Letras Jurídicas da Bahia. Presidente da Associação Norte e Nordeste de Professores de Processo, sócio do escritório de Didier Sodré e Rosa Advocacia e Consultoria, professor associado da Universidade Federal da Bahia (graduação, mestrado e doutorado), coordenador do curso de Direito da Faculdade Baiana de Direito. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Processual Civil, atuando principalmente no estudo da Teoria Geral do Processo.
[1] CALLIGARIS, Contardo.
“Ratatouille e o Desejo”. Quinta-coluna. São Paulo: Publifolha, 2008, p. 322.
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