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AULA DIREITO PRIVADO. SUJEITO DE DIREITO

►“PESSOA, SUJEITO DE DIREITO E CAPACIDADE

Os termos pessoa, sujeito de direito e capacidade pretendem designar conceitos basilares da teoria geral do direito. Ao pesquisar alguns dos manuais de direito civil publicados recentemente no Brasil, todavia, percebe-se uma desconfortante confusão nesse assunto.

Limitando a investigação aos mais recentes compêndios de direito civil, identificou-se que alguns autores sustentam uma equivalência entre os termos pessoa e sujeito de direito
[1]; outros, por sua vez, apresentam uma equivalência entre o termo pessoa e capacidade[2]. Por fim, há quem defenda umaidentidade entre os termos pessoa, sujeito de direito e capacidade[3]. Registre-se que, até mesmo em Pontes de Miranda, verifica-se uma complicada tentativa de explicação dos conceitos de sujeito de direito, capacidade e pessoa[4].

No meio dessa miscelânea conceitual, a teoria geral do direito contemporânea ressente-se de uma explicação para a inevitável questão: qual o sentido duma equivalência entre pessoa, sujeito de direito e capacidade?

As origens dessa relação de equivalência remontam, mais imediatamente, ao pensamento jurídico alemão do século XIX que procurou sistematizar o direito privado ao redor da figura do subiectum iuris como representação do homem livre, dotado de vontade e titular de autonomia
[5].

Se fosse possível resumir esse projeto sistematizador num único nome, provavelmente esse nome seria o de Savigny. Esta é a razão da escolha desse autor como orientação introdutória para a reflexão crítica sobre o tema proposto.

Savigny, em obra intitulada “Sistema de Direito Romano Atual”, logo nas primeiras páginas estipula um marco fundante para todo o seu pensamento: “O direito (...) nos parece como um poder do indivíduo. Nos limites desse poder, a vontade do indivíduo reina, e reina com o consentimento de todos. A esse poder ou faculdade, nós chamamos de direito, e alguns chamam-no de direito em sentido subjetivo”
[6].

Quantas informações numa única assertiva! O genial autor, a um só tempo, congrega os postulados da filosofia liberal do contrato social com o individualismo marcante no despertar da modernidade, para, por fim, uni-los no chamado “voluntarismo jurídico”
[7].

A equivalência entre pessoa, sujeito de direito e capacidade apresenta-se em Savigny como uma decorrência lógica de sua própria noção de direito. Não se trata de algo arbitrário e nem destituído de razão, portanto.

Percebe-se isso no segundo volume do mesmo tratado, na oportunidade em que esse autor sustenta que “todo o direito é decorrência da liberdade moral inerente a cada homem”. Como decorrência lógica desse postulado Savigny, logo em seguida, sentencia que “(...) a idéia primitiva de pessoa, ou seja, de sujeito de direito deve coincidir com a idéia de homem, e a identidade primitiva desses dois conceitos pode-se formular nos seguintes termos: cada indivíduo e, o indivíduo apenas, detém capacidade de direito”.
[8]

A dita equivalência entre pessoa, sujeito de direito e capacidade projetava na dogmática jurídica, mediante sofisticados conceitos gerais e abstratos, o ideal de uma sociedade criada em nome e em favor do homem burguês europeu que, muitas vezes, seria referenciado por essa mesma dogmática por outras fórmulas genéricas como o “homem médio”, o “bom pai de família”.
[9]
As diferenças culturais, sociais, econômicas, enfim, tudo aquilo que seria capaz de distinguir um ser humano de outro, passaria a ser limado pelos estreitos lindes do conceito de sujeito de direito, serviente para referenciar todo e qualquer ser humano (verificando-se, nisso, uma das marcas mais expressivas da modernidade).

A total adequação entre a conceituação teórica, o momento histórico do surgimento desses conceitos e a ideologia pertinente a esse contexto fizeram com que essa equivalência conceitual servisse como um norte seguro para a formatação dos códigos liberais, influenciando o direito de vários povos
[10].

Passados mais de cento e cinqüenta anos desde a original publicação das lições de Savigny – não obstante as inevitáveis críticas que a teoria do contrato social, que o individualismo moderno e o voluntarismo no direito vieram a sofrer –, essa equivalência ainda se encontra em livros editados no novo milênio, conforme demonstrado em notas de rodapé referenciadas ao início do texto.

Será que nada aconteceu desde então?

A resposta não poderia ser afirmativa. No Código Civil de 2002 podem-se encontrar menções ao sujeito de direito e à capacidade jurídica – ao lado de tantos outros conceitos tributáveis ao pensamento jurídico alemão do século XIX –, sem que, com isso, se esteja a atribuir a essas expressões rigorosamente o mesmo significado ideológico do tempo em que elas foram cunhadas.

Não há, nesse posicionamento, qualquer defesa da neutralidade dos conceitos jurídicos em razão da manutenção de sua operacionalidade ao longo do tempo. Muito pelo contrário! Os conceitos jurídicos, não obstante sua grande abstração e generalidade, somente podem ser corretamente interpretados quando contextualizados com o momento presente da sociedade e do ordenamento jurídico no qual eles se inserem
[11].
A própria manutenção de um conceito ao longo do tempo pode servir aos mais diferentes fins. Nada mais equivocado que a metodologia que tenta escamotear esses conteúdos dos conceitos jurídicos! Não se pode esquecer que o BGB não deixou de estar em vigor durante o regime nazista e, ainda hoje, é o código civil dos alemães.

Mas, se os conceitos jurídicos podem e devem ser revisitados
[12], mais do que nunca a questão inicialmente feita merece uma resposta: qual o sentido duma equivalência entre pessoa, sujeito de direito e capacidade?

Nesta oportunidade, pelas razões que serão expostas em nossas conclusões, pretendemos investigar apenas o conceito de sujeito de direito e capacidade, demonstrando como o inovador pensamento do Professor Marcos Bernardes de Mello mostra-se especialmente importante para uma releitura da teoria geral do direito civil.” (...)


[1] Assim, para Renan Lotufo: “A teoria tradicional identifica sujeito de direito com pessoa. O Código Civil adota o conceito de pessoa” (LOTUFO, Renan. Curso avançado de direito civil. v.I. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p.92). Maria Helena Diniz, por sua vez, é ainda mais enfática: “(...)‘pessoa’ é o ente físico ou coletivo suscetível de direitos e obrigações, sendo sinônimo de sujeito de direito.” (DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. 24.ed. São Paulo : Saraiva, 2007, p.113).
[2] “No direito moderno, toda pessoa é capaz de ter direitos e contrair obrigações, tendo assim a chamada capacidade de direito ou personalidade (...) Atualmente, toda pessoa, desde o nascimento até a sua morte, é considerada capaz de direito” (WALD, Arnold. Direito Civil: introdução e parte geral. São Paulo Saraiva, 2003, p.117 e p.118, p.137).
[3]Cite-se, nesse sentido: “Personalidade jurídica, portanto, para a teoria geral do direito civil, é a aptidão genérica para titularizar direitos e contrair obrigações, ou, em outras palavras, é o atributo necessário para ser sujeito de direito” (...) “adquirida a personalidade jurídica, toda pessoa passa a ser capaz de direitos e obrigações. Possui, portanto, capacidade de direito ou de gozo” (GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil. v.I. 8.ed. São Paulo : Saraiva, 2006, p.80 e 88, respectivamente).
[4] Neste sentido, destaca-se o seguinte trecho do primeiro volume do Tratado de Direito Privado: “Pessoa é o titular do direito, o sujeito de direito. Personalidade é a capacidade de ser titular de direitos, pretensões, ações e exceções e também de ser sujeito (passivo) de deveres, obrigações, ações e exceções. Capacidade de direito e personalidade são o mesmo” (PONTES DE MIRANDA. Tratado de direito privado. t.I. 3.ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1970, p.155).
[5]ORESTANO, Riccardo. Il in diritto romano. Torino: Giappichelli, 1968, p.17-18.
[6] SAVIGNY, M.F.C. Traité de droit romain. trad. M.Ch. Guenoux. t.I. Paris : Libraire de Firmin Didot Frères, 1855, p.7.

[7] Sobre o assunto, dentre tantas obras que se poderiam citar a respeito, referencia-se especialmente o pensamento de Michel Villey para explicação da relação entre a teoria do contrato social, o individualismo, e o voluntarismo no direito, indicando como suas raízes mais seguras o pensamento medieval de Guilherme de Occam e Duns Scott (cf, sobretudo, VILLEY, Michel. Essor et décadance du volontarismo juridique. In:_____. Leçons d’histoire de la philosophie du droit. Paris : Dalloz, 1962, p.18 et seq. e, versado em língua portuguesa, VILLEY, Michel. A formação do pensamento jurídico moderno. trad. Cláudia Berliner. São Paulo : Martins Fontes, 2005, p.225 e seguintes). No Brasil, interessante reflexão partindo de Villey e chegando a Savigny pode ser encontrada em CAVICHIOLI, Rafael de Sampaio. Crítica do sujeito de direito: da filosofia humanista à dogmática contemporânea. Dissertação de Mestrado aprovada no Programa de pós-graduação em Direito da UFPR. Orientador: Prof. Dr. José Antonio Peres Gediel. Curitiba, 2006.

[8] SAVIGNY, M.F.C. Traité de droit romain. trad. M.Ch. Guenoux. t.II. Paris : Libraire de Firmin Didot Frères, 1855, p.2. Para melhor compreensão do texto e tradução livre consultamos, também SAVIGNY. Sistema del diritto romano attuale. trad. Vittorio Scialoja. v.II. Torino : UTET, 1888, p.2
[9] Ainda que se referindo ao negócio jurídico, o pensamento de Francesco Galgano serve para a compreensão do surgimento e funcionalização dos conceitos gerais e abstratos de pessoa, sujeito de direito e capacidade: “Il processo di astrazione, dal quale nasce la categoria, si inquadra nel più vasto processo che attraverso l’astrazione mira all’uguagliamento formale del diritto: l’obbietivo è di realizzare un diritto uguale per tutti i cittadini, senza distinzione di classe; un diritto pensato in funzione di uma (...) In una società come la società tedesca della prima metà dell’ottocento, che non ha ancora conosciuto la codificazione, il processo di astrazione, condotto dalla pandetistica vuole essere sostitutivo della stessa codificazione: il valore sommo, cui i pandettisti conformano la própria opera, è che la costruzione dottrinale possegga, come la norma codificata, la più estesa valenza sociale e possa, pur nel suo indifferenziato contenuto, soddisfare e coordinare tra loro gli interessi più diversi o, addirittura, contrapposti” (GALGANO, Francesco. Il negozio giuridico. 2.ed. Milano : Giuffrè, 2002, p.18).
[10] Lê-se em Pontes de Miranda que “à doutrina pandectista do século XIX deve-se a elaboração da Parte Geral do direito civil a ponto de se haver imposto, no século XX, às condificações mais autorizadas, exceto, o que é lamentar-se, à codificação italiana” (PONTES DE MIRANDA. Tratado..., p.XX).
[11] Uma discussão muito similar a esse respeito ocorreu a propósito do debate sobre o conceito de negócio jurídico. Pode-se dizer que, se na década de 1990, o negócio jurídico chegou a ser considerado como uma mera categoria historiográfica (cite-se, nesse sentido, IRTI, Natalino. Letture bettiane sul negozio giuridico. Milano : Giuffrè, 1991, p.43), no início do novo século, o mesmo conceito parece revigorar-se, ainda que sob outros fundamentos. Conforme recentemente sustentou Giovanni B. Ferri, após mais de um século do surgimento da teoria do negócio jurídico, por mais que hoje pareça insustentável o fundamento ideológico inicial dessa teoria, o conceito manteve uma operacionalidade lógica que propiciou sua permanência no direito de vários povos (FERRI, Giovanni B. Il negozio giuridico. 2.ed. Padova : Cedam, 2004, p.23). Katya Kozicki, nesse sentido, argumenta que “negar a possibilidade de significados plurais a um mesmo signo jurídico constitui um fetiche dos juristas, para os quais a lei ganha contornos de verdade absoluta, mascarando o seu conteúdo ideológico”. Noutra passagem, a mesma autora observa que: “um dos mitos que cercam a linguagem jurídica é justamente atribuir sentidos naturais aos enunciados jurídicos, como se eles, por si sós, fossem portadores de significados próprios”. Por fim, destaque-se o posicionamento da autora com o qual concordamos integralmente: “Transplantada para o universo jurídico, a linguagem na qual se manifesta o processo discursivo do direito deve ser apreendida no contexto da suas práticas sociais geradoras. Isto implica que a compreensão do direito não pode estar dissociada daquela linguagem que lhe serve de enunciado” (KOZICKI, Katya. Linguagem e direito: problematizando a textura aberta dos enunciados jurídicos. In: FONSECA, Ricardo Marcelo. Direito e discurso: discursos do direito. Florianópolis: Boiteux, 2006, p.80, p.81 e p.80, respectivamente).
[12] Note-se que a manutenção acrítica dos conceitos surgidos com a modernidade não ocorre do mesmo modo noutros campos do saber. Ricardo Marcelo Fonseca anota o distanciamento entre a crítica da modernidade e da subjetividade e a aparente resignção dos juristas, aparentemente impermeáveis a essas alterações: “A crítica da modernidade e da subjetividade moderna que se desenvolveu nesse campo não foi seguida com a mesma intensidade no âmbito do direito e do pensamento jurídico. O sujeito (no caso, o ‘sujeito de direito’) continua a circular no discurso jurídico com uma desenvoltura impressionante. No discurso do direito reina absoluta a idéia de um sujeito dotado de plena racionalidade, portanto, totalmente autônomo e com domínio de sua vontade livre” (FONSECA, Ricardo Marcelo. Modernidade e contrato de trabalho: do sujeito de direito à sujeição jurídica. São Paulo: LTr, 2001, p.20).

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